(Avisos de conteúdo: discussão sobre transtornos alimentares restritivos e gordomisia)
Eu sou uma pessoa gorda que tem um transtorno alimentar restritivo.
Nunca tive diagnóstico formal em relação a isso. Algumas terapeutas riram de mim, outras disseram que “anorexia me faria bem”, outras me incentivaram a continuar com a “reeducação alimentar”. Eu não comento sobre isso com médicos, porque sei que eles não vão pensar que é sério. Muitas vezes nem eu penso que é sério.
Não tenho certeza de como começou.
Eu sempre fui gorda. Nasci prematura, e um médico passou um remédio para eu ganhar peso e crescer. Funcionou, e, aos sete anos de idade, o primeiro médico disse que eu precisava de uma dieta.
A ironia não me escapa.
Não foi só o médico. Desde bem pequena as pessoas reclamavam do meu peso. Eu sofria assédio diariamente por isso, de amigos, parentes, enfim. Aos nove anos, eu já odiava cada aspecto da minha aparência.
No final de 2008, aos quatorze anos, eu estava conversando com a minha namorada da época, e eu perguntei se ela se importava com eu ser gorda.
Ela disse sim.
Eu não precisei de outro empurrão.
Hoje eu sei que não é apenas estética. Talvez nem naquela época fosse.
Na minha cabeça, apalavra “gorda” é sinônimo de alguém que não merece nada, nem estar viva, e, como alguém que precisa da aprovação de outras pessoas, naquela época eu queria ser magra por conta da minha namorada. Eu queria ser magra porque ela – e outras amigas – queriam que eu fosse magra.
Existem alguns aspectos de transtornos alimentares que as pessoas que não passam por isso não entendem. Um deles é o fator de escolha. Eu ouvi de mais de uma pessoa que eu preciso tirar da minha cabeça a ideia de que parar de comer vai me fazer magra, como se eu escolhesse pensar desse jeito.
Não é escolha.
Eu entendo o pensamento por trás disso, afinal, fazer dieta é uma escolha, e as pessoas nos fóruns e blogs “pro-ana” fazem parecer que é algo simples: você acorda um dia, vê que não gosta do seu corpo e decide parar de comer. Mas não é assim que funciona. Talvez seja para algumas pessoas, aquelas que não vão desenvolver anorexia ou bulimia, e veem isso como uma dieta.
Transtornos alimentares restritivos não são sobre perder peso. Eles são uma obsessão. Não digo isso no sentido corrente da palavra, mas sim no patológico: é um comportamento obsessivo, e muitas vezes compensatório. Obsessivo porque o transtorno se fixa na ideia do corpo perfeito, e compensatório porque a pessoa doente muita vezes o desenvolve como uma maneira de enterrar outro problema. A lógica é a de que perder peso vai resolver alguma insatisfação que a pessoa tem com a sua vida – e tal insatisfação é algo incontrolável, que pode ser desde problemas no ambiente em que vive a, digamos, a morte de um ente querido.
A escolha não existe, da mesma forma que ela não existe em qualquer outro transtorno mental: uma pessoa com depressão não escolhe ficar deprimida. Outro fator importante a notar é que isso não vem da pessoa. Não é uma questão de autoimagem, pelo menos não apenas isso. É também pressão externa, em relação a mulheres em especial, principalmente mulheres gordas. Nós passamos todo o tempo sendo atacadas por estranhos em relação ao nosso corpo: ele não é saudável, nem bonito. Nós só somos consideradas seres humanos quando somos magras, e eu digo isso por experiência própria: o único momento da minha vida em que eu fui bem tratada foi durante o pico do meu transtorno alimentar.
É simplista reduzir todas essas questões a “você escolheu perder peso”. Também é simplista dizer que alguém que está acima de peso X não pode ter anorexia simplesmente porque não “perdeu peso o bastante”. Por que alguns comportamentos obsessivos e autodestrutivos são toleráveis, desde que a pessoa não chegue no IMC 15?
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