A maioria dos termos citados que não fazem parte de dicionários podem ser encontrados nas listas daqui, caso e leitore queira saber seus significados.
A ideia do Orientando era de ser um espaço informativo que atraísse colaborações e uma comunidade para pessoas que gostam de saber e de pesquisar sobre rótulos NHINCQ+. Depois de 5 anos, infelizmente nunca consegui uma comunidade muito coesa - a maior parte das poucas pessoas que frequentam o fórum posta pouco, e a maior parte da comunidade que se formou no Discord nunca pareceu ter muito interesse no site ou em seu assunto em si - mas uma das coisas que mais me surpreendeu foi a quantidade de adolescentes que demonstrou admiração pelo projeto, ainda que geralmente fossem pessoas que só frequentassem o Discord.
Após acumular mais experiência, isso passou a fazer sentido. O conteúdo do Orientando não é explicitamente sexual (o que facilita sua visualização em espaços mais vigiados), não é exclusivo a pessoas de alguma identidade específica (o que facilita a inclusão de quem está questionando) e é inclusivo de experiências muitas vezes ignoradas por espaços "LGBT" mais populares ou consagrados (o que é mais amigável para quem está descobrindo ser não-binárie, abro ou a-espectral, por exemplo, coisas que não são vistas como novidades inconcebíveis entre pessoas mais novas que já "tinham tais opções" desde que começaram a explorar sua identidade NHINCQ+, mas que podem ser vistas assim em outros espaços).
Acredito que a maioria das pessoas NHINCQ+ tenha noção de que ser NHINCQ+ não é um assunto exclusivo de maiores de idade, e nem de quem sempre soube que era NHINCQ+ desde jovem. Portanto, sempre vão existir pessoas novas na comunidade de todas as idades. Porém, com cada contexto social, a descoberta da própria identidade NHINCQ+ pode ser bem diferente, e quero falar aqui sobre algumas questões que são bastante comuns a pessoas que se descobrem/descobrem a comunidade NHINCQ+ a partir do Orientando ou de recursos similares (como wikis ou listas de termos).
Nem todo processo de descoberta é imediato
Algumas histórias de pessoas NHINCQ+ falam de algum momento único de descoberta, que também é baseado em sentimentos passados. Por exemplo, alguém pode ter sempre rejeitado a ideia de querer relacionamentos ou casamentos quando criança e adolescente, e, quando adulte, finalmente descobrir que as palavras arromântique e assexual existem e lhe descrevem. Ou alguém pode ter sempre tido amizades de certo gênero (que não era o designado) e sempre ter tido interesse em brinquedos e roupas de tal gênero, e começar a se identificar como o gênero em questão de forma privada na adolescência até descobrir que outras pessoas trans existem e adotar o termo trans para si.
Porém, isso não é algo fácil para todo mundo. Algumas pessoas sentem disforia de gênero desde cedo, passam anos se identificando como pessoas trans binárias, e depois descobrem que são não-binárias, e daí ficam anos sem saber ao certo qual ou quais são seus gêneros, ou se realmente possuem gênero. Algumas pessoas tinham certa certeza de que sentiam atração apenas por um gênero, mas daí começam a sentir atração por outro gênero e não têm certeza se isso tem a ver com serem fluidas, a-espectrais, de alguma orientação flexível ou o quê. Outras pessoas não sabem bem qual é sua orientação ou sua identidade de gênero e nunca conseguem se expressar de forma concreta quanto a isso, podendo nunca expressar nada ou ir mudando de rótulo cada semana até achar algum que continue sendo aplicável.
Essas pessoas ainda existem durante esse processo de descoberta. E mesmo pessoas que já se identificam da mesma maneira há anos podem descobrir que outras identidades as contemplam de forma mais precisa. Portanto:
- Algumas pessoas mudam de rótulos, e isso não significa que suas identidades anteriores eram mentiras ou que não dá pra confiar que a identidade atual da pessoa está certa;
- Tudo bem mudar de rótulos, as identidades atuais de alguém são aquelas que a pessoa vê como precisas naquele momento, e isso pode ou não mudar no futuro;
- Não há necessidade de ter pressa em entender toda mudança ou mudança de percepção relacionada com atração, relacionamentos, identidade de gênero, modalidade de gênero, expressão de gênero ou afins, seja para explicar ou para rotular.
Aliás, algo muito importante é a existência de comunidades mais abrangentes e de termos guarda-chuva. Alguém que não sabe se é poli, lésbique ou abro, mas que é mulher e sente atração por mulheres, deveria poder ter acesso a espaços sáficos/MAM, heterodissidentes ou NHINCQ+. Alguém que não sabe se é agênero-fluxo, gênero-liminar ou fluxofluide deveria poder frequentar espaços trans, cisdissidentes, não-binários, para pessoas do espectro agênero, para pessoas gênero-fluido e NHINCQ+ sem sentir pressão de se conformar a um termo específico que "garanta acesso".
É possível também só usar termos mais abrangentes, ou mesmo não se definir além de cisdissidente e/ou heterodissidente.
Vejo algumas vezes pessoas não querendo usar termos guarda-chuva, dizendo que não se sentem "no direito de" se dizerem trans por serem não-binárias, ou não-binárias por terem algum gênero similar a um gênero binário, ou multi porque sempre só se dizem bi ou pan. Mas a utilização de termos guarda-chuva é importante para reconhecer similaridades entre experiências e ter comunidades maiores na hora de lutar por direitos ou formar redes de apoio.
Termos identitários são descrições próximas, não restrições
Não há a necessidade de largar um rótulo por não se encaixar completamente em sua definição, e nem de passar a usar rótulos mais específicos porque eles são mais precisos.
Se alguém é mirromântique e demissexual, mas prefere se descrever como aroace ou mesmo somente como assexual, isso não é um problema, e também não infere que todas as pessoas aroace ou assexuais se encaixam nos termos mirromântique e demissexual. Se alguém é homem gay mas sentiu atração por uma mulher uma vez há décadas atrás, a pessoa não precisa usar outro termo se não quiser.
Da mesma forma, se alguém se encaixa mais ou menos em um termo como proxvir (alguém cujo gênero é adjacente a homem, mas separado), mas não totalmente, ainda está tudo bem usar só proxvir, ainda que existam rótulos específicos que servem para esse propósito (como paraproxvir, alguém cujo gênero é parecido com proxvir mas que não é exatamente proxvir, ou demiproxvir, alguém que é parcialmente proxvir).
Algumas pessoas sentem a necessidade de ter termos que descrevem suas identidades NHINCQ+ de forma completamente precisa. Isso não é um problema em si só, mas não precisa ser uma grande prioridade, ainda mais quando termos guarda-chuva, próximos ou que descrevem questionamento/indefinição de identidade também existem e podem ser usados enquanto a identidade está sendo explorada.
Rótulos NHINCQ+ não são caixas, e sim ferramentas. Algumas podem ser usadas em vários casos mas acabam não funcionando em situações onde há a intenção de passar uma informação mais específica. Algumas podem estar sendo usadas mesmo que não sejam as ferramentas mais recomendadas porque a pessoa só tem acesso a elas, ou só se sente confortável usando elas. Algumas podem só ser usadas em situações bastante específicas, porque a pessoa não quer usar elas pra tudo.
Mas não há a necessidade de se forçar a usar outra ferramenta quando a que está sendo usada funciona, ou de não tentar usar nenhuma ferramenta só por não ter certeza absoluta de que é a ferramenta mais correta.
Nem todo mundo teve acesso às mesmas informações ou se encaixa em narrativas típicas
Muitas pessoas se dizem gays ou lésbicas - ou apenas bichas, viades, sapatões, etc. - mesmo que possam se encaixar em outros termos para pessoas heterodissidentes, ou mesmo em termos para pessoas cisdissidentes.
Isso não significa que essas pessoas estão se identificando de forma errada ou menos radical (algo que não deveria ser dito de praticamente nenhuma identidade, aliás). Também não significa que essas pessoas precisem mudar a forma com a qual se identificam.
Esses termos podem fazer sentido dentro dos contextos onde essas pessoas vivem e interagem. E, enquanto isso pode ser frustrante para pessoas cujas identidades não possuem praticamente nenhuma forma de representação (como pessoas não-binárias, multi, de orientações fluidas e a-espectrais, entre outras), essas pessoas não são culpadas pelo apagamento de tais identidades.
Isso não dá o direito dessas pessoas dizerem que outras identidades que não estão em seu grupo são desnecessárias porque elas não veem sentido em ter termos separados. Mas a questão de não tolerar preconceito contra termos NHINCQ+ precisa acontecer dos dois lados.
Ninguém deve informações pessoais a ninguém
AC: narrativas que envolvem sequestro, assédio, abuso, cyberbullying e outras consequências reais de compartilhar tudo na internet.
Depois do Facebook normalizar a ideia de colocar o "nome real" e uma "foto real" em redes sociais na internet, muitas pessoas passaram a achar que não há problemas em usar o nome e sobrenome real em tudo, e além disso deixaram de se importar tanto em falar publicamente (no Twitter ou Instagram, por exemplo) onde vivem, qual escola frequentam, quais seus privilégios, suas marginalizações e seus gatilhos, etc., entre selfies e vídeos onde mostram como se parecem.
Isso é um perigo muito, muito grande. Especialmente para pessoas marginalizadas.
Alguém trans que lista seus gatilhos em um lugar público pode ser alvo de gente transmísica enviando imagens com tais gatilhos.
Ume adolescente que lista todas as suas opiniões políticas e fandoms pode ser um alvo fácil para que ume predadore procurando um relacionamento sexual com ume menor de idade se aproxime.
Ume menor de idade NHINCQ+ no armário com sobrenome público que segue/é seguide por gente da família em redes sociais (ainda que sejam em outras redes sociais em relação às que a pessoa é aberta sobre ser NHINCQ+) pode ter sua família notificada sobre essa pessoa ser NHINCQ+.
Ume adolescente que acabou de ser expulse de casa e que posta publicamente sobre precisar de um lugar para ficar porque não tem amizades ou família que se importam pode ser facilmente sequestrade por alguém na área que pode dizer que tem lugar pra pessoa ficar.
Dependendo do caso, mesmo sem a pessoa listar explicitamente lugar onde estuda/cidade/etc., fotos de lugares perto do endereço e outras informações podem fazer com que a pessoa seja localizada e seja alvo de grupos de ódio.
Se alguém que é dependente da família posta coisas "controversas" (como dizer que pessoas multi são válidas ou que neolinguagem é importante) e tem ou pode rapidamente ganhar uma audiência maior do que suas amizades do colégio, a não ser que a família possa e aceite se mudar ou contratar serviços de segurança caso isso seja necessário, informações sobre nome, endereço, foto e afins devem ficar em um perfil completamente separado.
Picrews que imitam a aparência real também são perigosos. Embora um só não possa identificar precisamente a aparência de alguém, vários podem.
Informações como lista de marginalizações e privilégios, rosto, nome(s) (legais ou reais), sobrenome(s), local, opiniões, gatilhos e interesses não precisam ficar públicas. Tudo bem querer avisar sobre que coisas você vai falar sobre em seu perfil, mas pode valer a pena fazer perfis separados para aspectos diferentes da vida, ter apelidos que não são dependentes do nome, não divulgar sobrenome real, não divulgar gatilhos fora de grupos privados para pessoas que já se conhecem, não publicar selfies (ou vídeos que mostram o rosto) junto com opiniões políticas (incluindo relacionadas à justiça social), etc.
Sim, tem muita gente por aí divulgando isso, e por isso alguém que quer achar um alvo óbvio pode não ir atrás de uma pessoa específica porque há muitas. Mas algumas pessoas sempre vão ser escolhidas como alvos, e eventualmente isso pode chegar em você, em uma amizade sua, etc.
Isso é um problema pra todo mundo, mas pessoas no armário e que não possuem recursos para se mudar caso algo aconteça são as mais vulneráveis.
Um exemplo que vejo acontecendo é que muitas pessoas colocam nome e sobrenome em seu nome de tela no Fórum Orientando. Isso significa que alguém pode pesquisar em um site de busca pelo nome e achar o perfil da pessoa num fórum sobre questões NHINCQ+, e falar para es responsáveis da pessoa, possivelmente causando problema com elus, ainda que a pessoa não tenha postado nada.
Por outro lado, também acho importante falar que pessoas podem mentir sobre suas identidades na internet. Não confie em pessoas só porque supostamente possuem a mesma idade, os mesmos interesses e/ou as mesmas identidades marginalizadas. Não só isso não faz dessas pessoas confiáveis, como também podem estar mentindo para conseguir popularidade/uma amizade/outro tipo de relacionamento mais facilmente.
Alguns relatos relacionados a isso
Uma pessoa tem informações públicas sobre sua vida de quando tinha 11-16 anos que nunca poderão ser deletadas. (🔗)
Ume engenheire de software anônime fala sobre como é fácil saber onde alguém mora com uma lista de IPs, dispositivos e e-mails. (🔗)
Ume anônime de 15 anos fala sobre como dar informação pessoal livremente fez com que elu ficasse vulnerável a abuso. (🔗)
Esta postagem fala sobre o quanto é fácil achar o endereço de alguém com informações aleatórias, e sobre o quanto é perigoso deixar um monte de informação pública por aí. (🔗)
Quando acontece algo por conta de informação ser postada livremente para todo mundo ver, a culpa não é da vítima, mas isso não significa que não vale a pena se proteger.
Opressão ainda existe, e não é só necessariamente "lá longe"
Ninguém tem a obrigação de dizer que é NHINCQ+
Com o reconhecimento de que pessoas NHINCQ+ existem e não são um problema a ser resolvido, há cada vez mais personagens NHINCQ+ em séries, filmes e afins. Só que, como a maioria está em ambientes di/cis/heterocêntricos, muitas vezes há um momento de "saída do armário", onde tal personagem se revela NHINCQ+ para outres personagens e para a audiência.
Acho que, por conta dessa narrativa, que provavelmente é causada pela forma que pessoas cis, hétero e perissexo possuem experiências com pessoas NHINCQ+ - de só entenderem/considerarem tais pessoas como NHINCQ+ a partir do momento que se abrem sobre isso - há uma ideia maior de que sempre há um momento na vida onde pessoas NHINCQ+ contam para sua família/sues colegas/suas amizades/etc. sobre ser NHINCQ+, em relação a décadas passadas.
Só que isso não é uma realidade pra todo mundo. Muitas pessoas esperam ter independência financeira e morar em um lugar separado antes de contar para suas famílias. Outras vivem parte de suas vidas - como relacionamentos e expressões de gênero desejades - em segredo de família, colegas e até mesmo amigues normatives. Outras pessoas guardam segredo sobre suas identidades e não agem em relação a ela suas vidas inteiras, ou boa parte delas.
Se uma pessoa vive num ambiente onde ser NHINCQ+ pode causar problemas (agressões, abuso, expulsão, etc.), não há vergonha em tentar sobreviver sem falar ou expressar nada sobre ser NHINCQ+. Se alguém quer verificar as opiniões de outras pessoas sobre o assunto, é possível usar figuras públicas ou personagens como exemplos, ou, dependendo, até mesmo páginas ou panfletos com definições de termos, ao invés de se abrir diretamente sobre ser NHINCQ+.
Mesmo que não haja risco, não há problemas em manter uma ou mais identidades NHINCQ+ como um assunto privado. Isso está dentro do direito de cada pessoa.
Espaços NHINCQ+ não são necessariamente livres de opressão
Não dá pra presumir que todo mundo que está em um determinado espaço baseado em identidade - mesmo um sobre ativismo ou sobre uma identidade bem específica - vai ser completamente antirracista, anticapacitista, anticissexista, antialossexista, anticapitalista e afins.
Recomendo que qualquer grupo do tipo feito para que pessoas interajam entre si e sejam acolhidas como pessoas marginalizadas em mais de um eixo tenha regras explícitas sobre não tolerar racismo, misoginia, cissexismo, diadismo, gordemisia, capacitismo, heterossexismo e afins (de forma não específica para que cubra mais do que a moderação lembrou de listar).
Também recomendo que qualquer pessoa não considere tais grupos automaticamente confiáveis e bem informados. Algumas pessoas neles podem soltar palavras estigmatizadas (sem elas serem ressignificadas), ódio contra identidades NHINCQ+ diferentes, desinformação sobre a ditadura militar ou qualquer coisa assim.
É importante ter espaços melhores onde tais coisas são combatidas, mas isso não é o dever de qualquer pessoa em específico (no máximo da equipe de moderação). Sinta-se livre para bloquear pessoas ou sair de grupos caso o ambiente seja tóxico demais, ou simplesmente desagradável.
Além disso, peço para que pessoas NHINCQ+ não se considerem automaticamente bem informadas ou desconstruídas por conta disso. Pessoas intersexo podem reproduzir diadismo, então como não poderiam ser heterossexistas, capacitistas ou racistas? É sempre importante ler sobre outras experiências de dentro e de fora da comunidade, entender os lados de argumentos intracomunidade e se informar sobre as várias opressões existentes.
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